Por Vinícius Vieira
O inadimplemento do locatário é, geralmente, o principal risco do locador. Em empreendimentos imobiliários e comerciais complexos, como é o caso de um shopping center, referido risco é potencializado pelos danos provocados não só ao “bolso” do empreendedor-locador, mas ao empreendimento como um todo, na medida em que a remuneração e manutenção de serviços essenciais ao shopping podem ser comprometidos diante dessa inadimplência, afetando a própria capacidade e atratividade comercial do empreendimento, circunstância que, evidentemente, prejudica a todos – empreendedor, lojistas e clientes.
Nesse sentido, é fundamental à segurança jurídica da operação comercial de shopping center a existência de garantias locatícias, isso é, de instrumentos que sirvam ao locador-empreendedor como mecanismo de indenização diante da eventual inadimplência do lojista. Na legislação brasileira, são tradicionais as formas de garantias locatícias previstas na Lei n.º 8.245/91 (“Lei de Locações”): caução; fiança; seguro de fiança locatícia e cessão fiduciária de quotas de fundos de investimento, conforme dispõe o art. 37 da Lei de Locações.
Sob o ponto de vista empresarial, o que se pretende idealmente dessas garantias é que elas sejam eficazes para indenizar integralmente o prejuízo experimentado com a inadimplência do lojista. Contudo, a prática pode demonstrar justamente o contrário: a execução patrimonial de um fiador, por exemplo, pode ser excessivamente onerosa em termos jurídico-processuais (honorários, custas, pesquisa de bens e a própria excussão de eventual bem, sobretudo imóveis), além de demorada – com o risco de permanência do lojista inadimplente no ativo imobiliário no curso desta discussão, caracterizando assim um duplo prejuízo: a inadimplência em si e o quanto o empreendimento deixou de ganhar ao não comercializar o ativo no período de inadimplência.
Portanto, escolher adequadamente a modalidade de garantia (ou optar pela sua não exigência, circunstância que permite ao locador o despejo liminar diante de inadimplência do locatário, nos termos do art. 59, IX, da Lei de Locações) é um assunto de vital relevância para a segurança jurídica da operação comercial do shopping center e, para tanto, é necessário que o empreendedor conheça quais são as características negociais e jurídico-processuais das formas de garantia aplicáveis aos contratos de locação.
Neste artigo, contudo, não irei dirigir o estudo dessas características às tradicionais formas de garantia previstas na Lei de Locações, mas aos seguintes questionamentos: (i) é válida a utilização de formas de garantia não previstas expressamente na Lei de Locações?; (ii) se sim, as garantias fiduciárias[1] poderiam ser utilizadas em operações comerciais envolvendo shopping center?
A respeito do primeiro questionamento, a doutrina majoritária entende que o rol de garantias previsto no art. 37 da Lei de Locações é taxativo, isso é, não admite outras formas, salvo aquelas previstas de forma expressa no dispositivo[2]. Ou seja, a princípio, o propósito deste artigo seria um contrassenso, uma vez que a legislação não permitiria que as partes pactuassem formas de garantia não previstas na Lei de Locações.
Todavia, o contrato de locação em shopping center é uma exceção[3] ao contrato de locação de imóvel urbano idealizado na Lei de Locações. A compreensão da taxatividade do art. 37 da Lei de Locações se funda no caráter protetivo do diploma legal em relação à vulnerabilidade do locatário, a qual não se verifica na figura do locatário em shopping center, geralmente um empresário qualificado, com assessoramento jurídico e robustez econômica para a livre pactuação de condições contratuais e alocação de riscos. Essa ideia de paridade entre shopping e lojista, aliás, é referendada pela própria Lei de Locações, conforme caput de seu art. 54, que diz:
“Art. 54. Nas relações entre lojistas e empreendedores de shopping center, prevalecerão as condições livremente pactuadas nos contratos de locação respectivos e as disposições procedimentais previstas nesta lei.”
Assim, não parece condizente à própria Lei de Locações impor a taxatividade das garantias previstas no seu art. 37 às relações locatícias em shopping center, considerando que a natureza desse ajuste convencional (garantia) não se trata de aspecto procedimental da Lei de Locações, mas material. Desta forma, desde que haja contrato de locação validamente assinado pelas partes, shopping e lojista, dispondo sobre garantia diversa de referido rol, em plena e consciente alocação de riscos (a qual, frise-se, é ratificada pelo art. 421-A, do Código Civil[4], inserido ao código por força da Lei n.º 13.874/19, a “Lei de Liberdade Econômica”), entendo ser válida a cláusula contratual que institua forma de garantia em modalidade diversa daquela prevista no art. 37, da Lei de Locações.
Isso nos leva ao segundo questionamento deste artigo: quais tipos de garantias extravagantes – isso é, não previstas na Lei de Locações - poderiam ser utilizadas nos contratos locatícios de shopping center? Segundo o raciocínio acima, qualquer garantia poderia ser aplicada neste contexto, desde que lícita e regularmente negociada e constituída. Interessa a este artigo, contudo, provocar discussão a respeito da possibilidade de utilização de dois tipos de garantias fiduciárias nas locações em shopping center: a cessão fiduciária de recebíveis do lojista e a alienação fiduciária de bem imóvel.
Tornou-se comum nos contratos de mútuo entre pequenos e médios comerciantes e financeiras a cessão fiduciária dos recebíveis do comerciante em suas máquinas de cartão de crédito como garantia do empréstimo. Por tal instrumento, o devedor transfere fiduciariamente ao credor os direitos creditórios (chamados no meio empresarial de “recebíveis”) relativo às vendas a crédito em suas máquinas, a ser apurado e individualizado por ocasião do inadimplemento do devedor. A principal vantagem desse tipo de garantia é a consolidação do crédito em benefício do credor (fiduciário) de forma extrajudicial, mediante simples comunicação do inadimplemento à instituição financeira que detém os recebíveis.
A operação comercial em shopping center possui algumas características que, assim penso, favorecem a utilização desse tipo de garantia: primeiro, o shopping center é um centro de operações comerciais que, hoje, utiliza-se predominantemente do cartão (de débito ou crédito) para a efetivação das transações comerciais, de modo que o fluxo de recursos por este meio de pagamento é constante e de fácil acesso ao lojista; segundo, para fins de apuração de aluguel percentual, é comum o ajuste contratual de direito de auditoria, pelo empreendedor, do desempenho comercial do lojista, o que lhe permitirá uma análise constante da “saúde” da garantia apresentada; terceiro, os custos dessa garantia são inferiores aos da caução ou seguro-fiança, por exemplo; por outro lado, a execução da cessão fiduciária é mais célere do que, por exemplo, a de um fiador, especialmente no caso de se tentar a excussão de patrimônio imobiliário em seu nome.
Por sua vez, a alienação fiduciária de bem imóvel possui a mesma lógica de constituição e execução da cessão fiduciária de recebíveis, contudo, o seu objeto é um bem imóvel, ou seja, diante do inadimplemento do devedor faculta-se ao credor a resolução da propriedade fiduciária imobiliária, consolidando-a em sua titularidade por meio do registro imobiliário competente. Entretanto, a sua utilização teria, assim entendo, um escopo restrito: uma vez que a alienação fiduciária de um imóvel implica alto valor de garantia, o objeto da dívida deve ser correspondente, circunstância que exclui a sua aplicação às locações de pequeno e médio porte, vale dizer, a maioria da composição do tenant mix.
Há, todavia, determinadas operações de alto porte ou de caráter específico, a depender das características do shopping center, que podem ter benefícios na constituição dessa garantia. É possível imaginarmos, por exemplo, a instalação de uma grande loja âncora, com a realização de investimentos recíprocos para adequar a estrutura do empreendimento. Ainda, em linha com a transformação dos shoppings em espaços que promovam serviços e atividades socio-culturais, pode-se pensar na adaptação, instalação e realização de atividades empresariais voltadas ao segmento de serviços ou atrações culturais e de entretenimento, também com investimentos recíprocos.
Em ambos os casos, as obrigações assumidas nos contratos de locação – que podem inclusive se adequar em operações built-to-suit – certamente serão vultuosas e passíveis, portanto, de garantia por alienação fiduciária de bem imóvel, conforme o caso.
Por fim, é importante deixar claro que as propostas desse pequeno artigo são provocativas e não pretendem, em absoluto, ser exaustivas, na medida em que diversos aspectos da utilização dessas garantias poderiam ser abordados, questionados e/ou aprofundados (por exemplo, a exequibilidade das garantias fiduciárias, a contestação judicial aos procedimentos de excussão etc.). Não obstante, tem-se aqui um ponto de partida, fundado na liberdade contratual própria às partes paritárias deste contexto específico de locação, para a justificação da utilização de garantias locatícias que sejam menos onerosas às partes e eficazes ao seu propósito de mitigar o risco e os danos advindos do inadimplemento do lojista.
Referências
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Contrato de Uso de Loja em Shopping Centers. In: BARBOZA, Heloisa Helena et. al. (org.). Lei do inquilinato: exame dos 30 anos da lei de locação urbana. Estudos em homenagem ao prof. Sylvio Capanema de Souza. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 810.
DINIZ, Maria Helena. Lei de locação de imóveis urbanos comentada. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
FACHIN, Luiz Edison. Comentários ao Código Civil. V. 15. São Paulo: Saraiva, 2003.
SLAIBI FILHO, Nagib. Comentários à lei do inquilinato. Rio de Janeiro: Forense, 2010.
SOUZA, Sylvio Capanema de. A lei do inquilinato comentada. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017.
[1] Sobre o negócio fiduciário (dentre os quais se encontra a garantia fiduciária), convém lembrar que: “O fiduciário é titular de um direito sob condição resolutiva; em face da transferência em garantia, é dono dos bens transferidos de modo restrito e resolúvel. A extinção desse direito de propriedade está prevista no próprio título constitutivo. É um negócio jurídico (por conseguinte, contrato fundado em relação obrigacional) que constitui um direito real de garantia condicional. A condição resolutiva, na hipótese, é adimplemento da obrigação assumida. Emerge daí sua característica essencial, que a define.” (FACHIN, 2003, p. 340).
[2] Cf., SOUZA, 2017, p. 175; DINIZ, 2014, p. 196; SLAIBI FILHO, Nagib, 2010, p. 258.
[3] Veja, nesse sentido, a discussão a respeito da própria natureza do contrato de locação em shopping center (se típico, atípico ou “misto”, cf. AZEVEDO, 2021, p. 832-841). Para os fins deste artigo, destacamos que, independentemente da teoria adotada, tem-se na prática contratual da locação em shopping center a utilização de instrumentos extravagantes à Lei de Locações (por exemplo, o coeficiente de rateio de despesas, aluguel percentual, res sperata, dentre outros). Todos esses instrumentos possuem notório caráter empresarial, pois demandam tanto do lojista quanto do empreendedor o cálculo negocial estratégico, investimento de capital e alocação de riscos. Tais condições contrariam a presunção de vulnerabilidade da posição do locatário.
[4] Art. 421-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que:
I - as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução;
II - a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; e
III - a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada.” (g.n.)
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