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CANTARES

Atualizado: 9 de jun. de 2023

A revolução tecnológica iniciada com a internet levou ao desenvolvimento de uma nova religião, o “dataísmo”.


Por Marcos Bravi


A revolução tecnológica iniciada com a internet levou ao desenvolvimento de uma nova religião, o “dataísmo”, segundo o qual a espécie humana é entendida como um sistema único de processamento de dados, no qual indivíduos humanos servem como chips. A história é um processo de melhora da eficiência deste sistema, mediante o aumento de processadores, o aumento da variedade destes processadores, o aumento do número de conexões entre estes processadores e a liberdade de movimento da informação produzida.


Esta é uma das ideias postas e desenvolvidas pelo historiador Yuval Noah Harari em seu livro “Homo Deus – Uma breve história do amanhã”, publicado pela Editora Shwarcz em 2015. Admitir o que o autor chama de nova religião significa descartar o conceito que todos somos únicos e acolher um novo paradigma, segundo o qual algoritmos, analisando dados bioquímicos voluntariamente oferecidos à nova divindade tecnológica por meio dos gadgets, serão capazes de nos entender melhor do que nós mesmos e direcionar a espécie para um futuro de possibilidades paradisíacas ou apocalípticas.


O Autor propõe que este movimento representará o abandono do “humanismo”, religião em voga ao menos no Ocidente, que realocou a fonte do significado e da autoridade do céu para os sentimentos humanos e atribuiu a estes sentimentos a responsabilidade de orientar, em última instância, as decisões de cada indivíduo.


A leitura da obra constrói um ponto de reflexão fundamental e complexo: As religiões formatadas pelo autor escancaram a oposição entre a consciência e a inteligência. O desenvolvimento tecnológico dos últimos cinquenta anos levou ao aumento titânico da inteligência disponível a indivíduos que possuam algum acesso à internet. Em 1972 era impensável descobrir como fazer certa tarefa, o valor de certa moeda ou a composição química de uma medicação com uma simples pergunta ao próprio telefone.


Por outro lado, o aumento da inteligência tornou o processo decisório muito mais complexo e angustiante do que antes. Se em 1972 o acesso à informação era restrito, o indivíduo precisava processar menos dados para chegar à uma conclusão satisfatória. Hoje, com o aumento colossal dos dados disponíveis na ponta dos dedos, há muito mais dados a serem processados antes da escolha ser feita.


Daí a importância da consciência. Afinal, o deus dataísta está em construção, já que ainda não é possível delegar os rumos individuais e coletivos à análise de dados de um algoritmo onisciente e onipresente. Hoje o Waze consegue propor ao indivíduo o melhor caminho a seguir, mas é o indivíduo quem decide se vai ou não adotar a rota sugerida. O dilema pode parecer exagerado ao examinar tarefas rotineiras como pedir uma refeição, alugar uma bicicleta ou chegar a um destino próximo. Mas ele ficará evidente se aplicado a tarefas como definir um tratamento médico, escolher uma opção de investimento ou aceitar um emprego.


Daí o título emprestado de Antônio Machado: Seu poema “Cantares”, escrito no começo do século vinte, já alertava que o caminho não existe de antemão. Ele é feito ao movimento, um passo por vez. A tessitura da vida se faz com as decisões tomadas ao longo dela e por mais que a inteligência seja importante, não é suficiente para eximir a responsabilidade da consciência.


Também por isso a necessidade de contarmos uns com os outros. Dado que a existência é conjunta e o ser humano é incompleto, o sucesso individual depende da conexão com outras pessoas, formando uma rede firme de laços familiares, de amizades e de relações amorosas que propiciarão a análise coletiva de dados e a tomada de decisões efetivas. Afinal, se um corpo de pessoas pode formar um processador de dados mais eficiente, também pode formar uma consciência mais clara. O papel principal da consciência – ao qual ainda não há ator substituto – é permitir o diálogo advertido entre fatores internos e externos, revelando as necessidades envolvidas e habilitando a tomada de decisões que atribuam sentido às ações e levem ao resultado desejado.


Essa complexidade também pertence aos negócios: Decisões que antes eram tomadas em almoços ou reuniões informais hoje são cercadas por apresentações de dados, análise de gráficos, simulações e outras providências na vã esperança de que o melhor caminho se revele voluntariamente. No entanto, é imprescindível colocar a consciência no papel protagonista que ela merece.


Deste modo, a tomada de decisões começa na análise de dados, passa pela identificação dos sentimentos individuais envolvidos e converge nos diferentes pontos de vista do grupo. Este exercício – nem sempre fácil, nem sempre tranquilo – propicia a construção de uma decisão plural e divide a angústia que acompanha o processo. Por isso é importante ter pessoas ao seu lado que, ao invés de dizerem que tem tudo sob controle, ajudem você a compreender os riscos dos caminhos que você escolher.


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