Por Anna Keller e Vinicius Vieira
Introdução
No ramo de operações de empreendimentos imobiliários e comerciais como shopping centers, é notável a larga utilização de contratos de prestação de serviços e fornecimento de materiais e/ou mão de obra de longo prazo ou, simplesmente, contratos operacionais. Fornecimento de mão de obra para atendimento de clientes, limpeza do mall e banheiros, segurança patrimonial, vigilância, serviços de manutenção de elevadores, escadas rolantes, de sistemas elétricos, hidráulicos, ar-condicionado, operação de sistemas de estacionamento, dentre tantos outros, são exemplos corriqueiros de contratos desta espécie que, não raramente, permanecem vigentes por anos, até mesmo décadas.
O decurso do tempo, naturalmente, dá ensejo a situações econômicas ou operacionais que modificam as circunstâncias fáticas que viabilizaram, originariamente, a contratação[1]. Embora o contrato seja um instrumento voltado a formalizar obrigações e diminuir riscos decorrentes do decurso do tempo, é certo que ele não tem a capacidade de prever todas as situações futuras e incertas que possam ocasionar a alteração das condições fáticas ou premissas que deram ensejo à formação do contrato.
Nesse sentido, a revisão contratual é tema recorrente nos negócios. Tão importante quanto contratar é saber revisitar as condições do contrato diante de uma contingência futura que desafie a sua viabilidade. É muito conhecida na literatura jurídica e nos tribunais, neste aspecto, a possibilidade de revisão judicial do contrato, objetivando o retorno do contrato às suas condições originárias, como forma de manutenção de seu equilíbrio sinalagmático, por força do direito e de decisão judicial. Contudo, este não é o tema deste artigo. Nos interessa, aqui, o manejo da revisão negocial do contrato por parte de administradoras de contratos operacionais junto aos seus fornecedores, objetivando a manutenção da viabilidade econômica-operacional dos contratos, evitando rescisões, penalidades ou mesmo impactos operacionais e, consequentemente, comerciais para o empreendimento.
A boa execução da revisão negocial do contrato, contudo, demanda a utilização de técnicas de negociação e jurídicas, sendo o objetivo deste artigo apresentar e comentar a importância de alguns desses recursos, elencando estágios enfrentados por aqueles que se deparam com o cenário de alteração de premissas negociais em contratos operacionais de longo prazo.
1. Mapeando o impacto operacional, condições de mercado e riscos jurídicos.
O primeiro passo da revisão contratual consiste em saber se, de fato, ela é necessária. Não raro, tanto os responsáveis pela administração operacional do shopping quanto profissionais jurídicos consultados podem cogitar que uma dada situação, potencialmente modificadora das premissas iniciais do contrato, pode se prolongar no tempo e ocasionar a necessidade da revisão contratual. Contudo, o contrário também pode acontecer: a situação não se mostra permanente e, por erro de mapeamento do impacto operacional, iniciou-se um processo de revisão contratual às custas do comprometimento da relação comercial havida entre as partes.
Questões como: “qual a extensão do impacto operacional e áreas envolvidas?”; “há urgência na revisão contratual?“; “há solução no mercado a preço, qualidade e condições compatíveis?”; “há viabilidade contratual para suspensão das obrigações, de parte a parte?”; “quais as condições legais ou contratuais (penalidades, aviso prévio, cláusula de exclusividade ou não concorrência, cláusula arbitral, risco de passivo trabalhista, fiscal etc.) para uma rescisão contratual?”; “há circunstâncias anteriores, inclusive jurídicas, que prejudicam ou favorecem a revisão, com prova suficiente da ocorrência dessas circunstâncias?”, entre outras, são fundamentais para o mapeamento do impacto operacional, condições de mercados e riscos jurídicos atrelados à revisão contratual.
Responder a essas questões não é tarefa simples e demanda estudo e engajamento entre o setor operacional e jurídico responsáveis pelo contrato a ser potencialmente revisto, com destaque principalmente aos fatores de risco que podem prejudicar a operação (p. ex., suspensão dos serviços sem tempo hábil de planejamento de nova contratação) ou o próprio caixa do empreendimento (pagamento de multas, indenizações, novas contratações a preços elevados etc.).
O mapeamento dessas questões antes da revisão contratual, portanto, é fundamental. Afinal, tão importante quanto saber a necessidade de revisão contratual, é reconhecer quando não a fazer.
2. Estabelecendo premissas operacionais e jurídicas para a negociação da revisão.
Reconhecendo-se a necessidade da revisão contratual, chega-se ao segundo passo de nosso percurso, referente ao estabelecimento das premissas operacionais e jurídicas para a negociação com o fornecedor. Premissas, nesse caso, significam as condições de negócio, isso é, as condições imprescindíveis para a manutenção/viabilidade do contrato, em termos operacionais e jurídicos. Ao defini-las previamente, por exclusão, define-se também o que pode ser concedido em negociação. Note-se que, ainda, a negociação sequer foi iniciada. Novamente, o trabalho prévio é fundamental para o foco negocial da revisão.
No aspecto operacional, a equação entre preço, disponibilidade orçamentária, qualidade operacional e alternativas de mercado é suficiente para apontar quais premissas operacionais são inegociáveis na revisão contratual. Já sob o viés jurídico, a definição da natureza e efeitos jurídicos da situação fática que dá ensejo à revisão contratual é um primeiro passo necessário para a definição dessas premissas. Compreender se o fato se qualifica como um evento de força maior ou fortuito externo, incapaz de ser previsto pelas partes, ou como um fortuito interno ou força maior prevista, pois decorrente de situações próprias ao negócio avençado, é fundamental para a definição de quais premissas modificativas podem ser vinculantes, no caso de uma discussão judicial da revisão contratual. Da mesma forma, a existência de prova efetiva de determinada falta ou responsabilidade contratual ou a caracterização jurídica de um passivo trabalhista ou fiscal decorrente da rescisão abrupta do contrato operacional, são exemplos de questionamentos necessários para a definição de quais pontos são juridicamente robustos e, portanto, inegociáveis, e quais são mais frágeis, convidando a sua transação e flexibilização no curso da negociação.
Mais uma vez, essa etapa demanda engajamento entre os setores operacionais e jurídico. O resultado desse trabalho é a formação de uma “lista de premissas”, o rol de “condições inegociáveis” ou, se negociáveis, em que escala de prioridade em relação aos demais itens da lista.
1. Negociando com elementos objetivos e subjetivos.
Elaborada a lista de premissas operacionais e jurídicas, é chegada a hora do terceiro passo: negociar com o fornecedor. Negociar é um ato de cooperação que envolve aspectos objetivos, tais como questões de características do objeto e do negócio, preço, concorrentes, regularidade contratual e legal etc., e subjetivos, tais como alteridade, polidez, respeito e, principalmente, confiança. Em geral, situações de revisão contratual são críticas: apresentam um desafio externo que dificulta, para uma ou ambas as partes, a permanência da relação negocial. Logo, as negociações de revisões contratuais também são críticas e demandam, por consequência, o uso de todos os recursos negociais possíveis.
Quanto aos aspectos objetivos, ao se chegar na mesa de negociação, o ideal é que a maior parte de sua demanda já tenha sido suprida, com a boa execução dos estágios anteriores, citados neste artigo. Esse aspecto da negociação, embora seja necessário, não é o único em operação no curso da negociação e, por vezes, também não é o elemento decisivo desta.
“Quanto tempo de parceria existe entre as partes?”; “Quais casos já foram resolvidos, com absorção de custos pelo empreendimento, em nome da manutenção do contrato e do fornecedor?”; “Quais oportunidades podem se apresentar no futuro, considerando uma concessão para o momento de dificuldade mútua?”, são exemplos de questionamentos que acionam tanto elementos objetivos quanto subjetivos na negociação e, conforme o contexto e as prioridades indicadas na “lista de premissas”, devem ser utilizadas de forma conjugada à lista de premissas acima mencionada, que deve ser o guia racional para a tomada de decisões.
Evidentemente, é enganoso pensarmos que a definição da lista de premissas e a utilização desses recursos objetivos e subjetivos na negociação é suficiente para se determinar o negócio. Como visto, negociar é um ato cooperativo, e a postura do fornecedor pode ser completamente obstativa, não cooperativa, intransigente. Cabe ao empreendedor, aqui, apresentar as razões que justificam a transigência e, ao fim, formalizar o acordo que se mostrou viável a ambos os lados, ou dar sequência ao encerramento, negocial ou litigioso, do contrato, tópicos que abordaremos adiante.
2. Formalizando o acordo: a importância de se “amarrar” apenas o necessário.
Com o sucesso do acordo, caminha-se para outro momento decisivo, o quarto passo de nosso percurso: a redação do instrumento da transação, o qual, geralmente, trata-se de um aditamento ao contrato existente. Em que pese tratar-se de tarefa mais propriamente jurídica, a validação em conjunto com o gestor operacional do contrato é fundamental: afinal, é o negócio dele que será impactado com o instrumento que consolida o acordado.
Nessa etapa, é necessária atenção, especialmente pela área jurídica, para uma redação restrita ao produto dos pontos negociados, conforme registrado na ata de reunião acima mencionada, com a definição de penalidades e/ou outros instrumentos de segurança para as obrigações acordadas de forma razoável e proporcional.
Não raro, ocorre no contexto da redação a “tentação de se amarrar” condições específicas por períodos incertos ou sob condições vagas, com a ilusão de se criar uma vantagem maior do que a efetivamente negociada. Explique-se o motivo dessa tentação ser uma ilusão: a redação do instrumento final é apenas a expressão final de um acordo que visa a superação de uma dificuldade comum. Não é uma conduta de boa-fé contratual a criação de uma “vantagem” que vá além do resultado efetivo da negociação, ainda que ela eventualmente “passe” na redação do instrumento e seja assinada pelas partes. A constatação posterior dessa condição que não foi previamente e claramente negociada, além de ser passível de questionamento judicial, possui o efeito de derrubar um elemento fundamental nos contratos operacionais: a confiança.
Ou seja, assim como o contrato deve ser uma representação legítima do negócio existente entre as partes, o aditamento ou instrumento de transação da revisão contratual também deve sê-lo. Uma falha nesse sentido pode comprometer a viabilidade do contrato não apenas pela dificuldade comum que deu ensejo à negociação revisional, mas pela perda do elo de confiança necessário para operações de longo prazo.
1. Não houve acordo. E agora?
Como é próprio dos negócios, nem sempre a cooperação é viável e, nesses casos, a solução é o encerramento do negócio, total ou parcialmente, formalizada pela rescisão contratual, ou pela judicialização do assunto, caso essa via tenha se mostrado uma opção viável no curso do planejamento/negociação da revisão.
Evidentemente, a solução mais segura para as partes é a elaboração do distrato, documento jurídico que encerra de forma negocial a relação estabelecida pelo contrato. Nos contratos operacionais, é comum existir haveres recíprocos ao final de anos de prestação continuada de serviços, sendo a compensação um importante instrumento de facilitação do pagamento desses haveres. Para a utilização segura desse instrumento, é fundamental, por parte do empreendimento contratante, que seja contratualmente autorizada a compensação, considerando que o regramento legal do tema não autoriza o pagamento de obrigações em forma diversa daquela contratada, salvo se previamente autorizado pela parte credora da obrigação[1]).
A redação do instrumento de distrato, tarefa que mais uma vez é de relevante encargo jurídico, deve se ater à descrição pormenorizada dos haveres recíprocos (isso é, o quê, a quem e a qual título se deve), com o objetivo de validar a compensação e torná-la o mais compreensível possível, pois é justamente essa clareza que permitirá uma adequada execução judicial do distrato, na hipótese de seu descumprimento.
Conclusão
O futuro, por definição, é incerto. Podemos (e devemos) imaginar hipóteses mais prováveis de risco e nos resguardar contratualmente delas, mas é ingênuo achar que podemos controlar totalmente o futuro por meio de um contrato. Está ao nosso alcance, porém, sedimentar comportamentos em uma relação contratual que, na contingência futura, poderão, em conjunto com os instrumentos e recursos jurídicos adequados, desempenhar um papel fundamental na cooperação em momentos difíceis, como são aquelas de revisão contratual forçada por fatores externos ao negócio.
Nesses casos, vimos que a execução da revisão negocial não é tarefa simples, mas composta por uma série de ações que vão desde o mapeamento em si da existência e extensão da suposta causa de revisão contratual, até os detalhes da negociação e sua respectiva formalização, por meio do instrumento contratual cabível.
Para tanto, é preponderante o papel do gestor operacional, que conhece do seu negócio, seus fornecedores, em suas virtudes e defeitos nos aspectos objetivos e subjetivos, os quais devem ser todos alinhados e compreendidos pela área jurídica correspondente, a fim de que o instrumento contratual seja de fato uma expressão da devida revisão negocial, e não apenas uma formalização burocrática e genérica de uma relação negocial densa e complexa, como costumam ser os contratos operacionais que tratamos neste artigo.
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